Eles passarão, eu passarinho!

sábado, 7 de maio de 2016

O dia em que fui estuprada

Antes de qualquer coisa, é necessário admitir que existe no Brasil uma "cultura do estupro" que considera a vitima como responsável pelos abusos que sofreu.  Também por isso, esse é um tema difícil para mim, pois, apesar de saber de tudo isso, eu nasci e fui criada dentro dela, nesse modelo de sociedade patriarcal.
Assim como muitas outras mulheres, eu me considerei culpada por um tempo e assim como elas, me silenciei. O meu caso se juntou a tantos outros que jamais foram denunciados, porque existe um comportamento persistente que cerca o estupro: o silêncio e o medo.  Esses mecanismos invisíveis fazem com que 90% da violência sexual jamais seja conhecida por ninguém.  Mas porque isso acontece? Porque somos estranhamente incrédulos para acreditar que ele realmente ocorre? E porque as pessoas são tão invasivas? Elas perguntam que roupa você vestia, onde estava, que horas eram, se estava bêbada, se deu a entender que queria fazer sexo... Não, minhas roupas não eram curtas, mas mesmo se fossem! Sim, era tarde, mas não foi o horário que quase rasgou minha calça. De fato, eu havia bebido, mas não foi o álcool que me trancou em um quarto. Foi um homem, como qualquer outro.
Meu estuprador tem amigos, família, trabalha, estuda. Ele não é diferente de uma pessoa normal. Estuprador não é só aquele cara que ataca mulheres na rua escura, as 2h da matina.   Eu o conheci em uma festa e conversamos a noite inteira, eu estava encantada. Ele não parecia com o lobo mau, estava muito mais para príncipe encantado. Por isso, quando as coisas começaram a acontecer eu não conseguia acreditar. Em alguns momentos eu me sentia como uma observadora, como se estivesse de fora da cena, como se ela não estivesse acontecendo comigo. Mas chegou um momento que consegui aquilo que muitas mulheres não conseguem: tomar as rédeas. Quando o pânico tomou conta de mim e eu me dei conta de que aquela mulher se debatendo no sofá era eu, resolvi ameaçar. Funcionou, pois o medo de um escândalo o fez recuar e me salvar da penetração, de um pesadelo que poderia ter sido bem pior.
 Assustada e sem saber o que fazer, procurei apoio nas minhas irmãs e amigos, mas devo dizer que foi um tanto sofrido. O ato de contar em si já era algo vergonhoso, eu me sentia suja, “imoral”, como algo que deu errado e deveria ser eliminado. Caros amigos, naquela hora eu não precisava ouvir que estupro era uma palavra muito forte pra isso, que ele poderia ter feito porque tinha bebido demais, que não sabemos se foi um caso isolado, ”podia ter sido só um deslize”. Ao dizer isso, vocês me fizeram acreditar que não tinha sido um estupro, que tinha sido só um abuso e que eu havia, de certo modo, permitido isso.  Por outro lado, acredito que tenho tido a sorte de ter um bom ex, irmãs e alguns amigos para dizer que foi um estupro sim, que a culpa não foi minha e sim dele, e que mesmo que a sociedade diga o contrario, nada dá a ele o direito sobre o meu corpo.
 O fato dessa não ter sido a primeira vez que algo assim acontece, me fez acreditar mais ainda nessa suposta responsabilidade. Eu acreditei piamente que havia algo de errado comigo, que de alguma forma eu merecia isso o que só contribuiu para me silenciar.
Quando fui abusada sexualmente pela primeira vez, eu tinha 13 anos. Foi nas férias, eu era uma criança pensando que conhecia o mundo e ele era quase um homem feito, com seus 18 anos. Ele me forçou a masturba-lo e forçava sua mão para dentro de mim, além das outras partes do corpo. Eu não tinha a consciência do que estava acontecendo na época, só sabia que algo que eu não queria que acontecesse estava acontecendo. Ele me ameaçou depois, disse que se eu contasse para alguém ele iria “se vingar”, conseguindo me calar por 4 anos.
Apesar de não perceber bem, eu passei anos convivendo com o peso do silencio, acreditando que era defeituosa. Só quando fui me abrir com meu então namorado sobre toda a situação, eu me senti bem comigo mesma. Porque falar sobre e ser ouvida por alguém que me compreendeu e me aceitou, que me consolou e não me julgou em momento algum, aliviou bastante a minha alma.
Eu não quero saber, caro leitor, o que você acha que é ou não é estupro. Isso não é sobre você, não é sobre sua opinião. Esse texto é sobre não se calar, é para que aquelas meninas que passaram por situações como essas saibam que a CULPA NÃO É DELAS, que elas não devem ser mais uma estatística. VOCÊS NÃO ESTÃO SOZINHAS.

Por que o silêncio vence:
78% dos brasileiros acham que o que acontece entre um casal em casa não interessa aos outros.
63% pensam que casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família.
E como a culpa cai no colo delas:
59% dos brasileiros concordam que existe "mulher para casar" e "mulher para a cama".
58% acreditam que, se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros.

Fonte: IPEA

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