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quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Resenha - Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire)

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes Necessários à Prática Educativa- Editora Paz e Terra. 2016 53ª Edição
Conhecido como o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife e foi graduado pela Faculdade de Direito de Recife, onde também foi professor de História e Filosofia da Educação. A coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação com o intuito de capacitar o oprimido para a sua libertação, fez dele um dos primeiros brasileiros a serem exilados. Em 1969, trabalhou como professor na Universidade de Harvard, e passou a ser reconhecido mundialmente pela sua práxis educativa. A Paulo Freire foi outorgado o título de doutor Honoris Causa por vinte e sete universidades e é cidadão honorário de várias cidades. Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo, vítima de um infarto agudo do miocárdio[i].
Deixou como parte de seu legado aos educadores 37 obras, entre elas Pedagogia da Autonomia – saberes necessários a prática educativa. Este livro começa com as suas Primeiras Palavras, ou seja, um breve resumo do que se trata sua obra. Ela tem como temática central, a formação docente e a prática educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos. Sua escrita, com uma marca oral forte, retoma assuntos e conceitos de outros livros escritos por ele, o que pode tornar a leitura da obra difícil para aqueles que estão começando a conhecer o autor.
Sua preocupação na inclusão do ser humano percorre por todo o seu livro. Neste contexto, algo que chama a atenção é o esforço para manter uma linguagem mais próxima do neutro possível. Como ao utilizar “mulheres e homens”, “cheias ou cheios” e “a humanidade” ao invés de apenas “homens”. Também deixa claro que o seu ponto de vista é o dos “condenados da terra”, os excluídos, e por conta disso, opondo-se ao cinismo da ideologia neoliberal, não possui nenhum interesse de assumir uma posição de observador imparcial. Isso não quer dizer que Freire não possua uma rigorosidade ética, mas muito pelo contrario que, como educador não pode escapar dela. Mas, sabendo que este é um aspecto cultural e diverso, passamos a nos perguntar: a qual ética ele se refere?
Falo da ética universal do ser humano. [...] que condena a exploração da força de trabalho, que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe (pag.17-18).
E a melhor maneira de lutar por esta ética, sem cair no moralismo hipócrita, é vivendo-a em nossa prática. Por isso, a prática educativa deve ser vista como pratica formadora, sendo formar mais do que apenas treinar o aluno, que precocemente já é submetido ao comando da malvadez da ética do mercado. Ainda nesse contexto e, se a cronologia permitisse, quase como uma resposta a Escola sem Partido[1], Paulo Freire diz:
Posso não aceitar a concepção pedagógica deste ou daquela autora, e devo inclusive expor aos alunos as razões pela qual me oponho a ela, mas o que não posso, na minha crítica, é mentir. [...] é fundamental que percebam o respeito e a lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros. [...] É necessário reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados pelo aspecto genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. (pag. 18)
Finalizando a introdução, a obra passa a retratar tudo o que “ensinar exige”. Para isso ela é, então, dividida em três partes, sendo a primeira delas denominada Prática docente: primeira reflexão, e subdividida em outras nove partes, assim como as seguintes. Como a preocupação é em discutir alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista, a ideia fundamental dessa parte (e em todo o livro) é a de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para as suas produções ou a sua construção. Quanto mais criticamente se desenvolva o estudante, menor é a probabilidade de se construir uma sociedade alienada. Sendo assim, cada vez mais se constrói e desenvolve o que Freire chama de curiosidade epistemológica, recusando-se o autoritarismo e tornando necessário que o educando mantenha vivo o gosto da rebeldia, a força criadora do aprender.
É preciso que vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. Ou seja, não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos não se reduzem a condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (pág. 25).
Educar, então, exige rigorosidade metódica, por isso que o educador deve reforçar a capacidade crítica do educando para que, um dia, ele se torne sujeito ativo da construção do saber ensinado e não um mero repetidor. O discurso do patrono da educação se comunica, analogamente, ao pensamento de Viviane Mosé[2] sobre a escola como fábrica, onde o aluno é muito mais um repetidor de ideias do que um aprendiz. Por ser ensinado a pensar mecanicistamente, ele não consegue estabelecer relações, por exemplo, entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, por isso ensinar também exige criticidade.
Advém então a necessidade do que ele chama “pensar certo”. Diferentemente da ideologia fascista, que considera como certo apenas os seus “iguais”, atuando contra as liberdades individuais. Freire considera que uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Ou seja, respeitar o senso comum sem deixar de estimular a contestação e a capacidade criadora do educando. É ter consciência do nosso inacabamento. É profundidade na interpretação dos fatos. É pesquisa continua, e não há educação sem ela, gerando superações e rupturas na medida em que a curiosidade ingênua se criticiza.
Porém, não adianta em nada “pensar certo” se a pratica não acompanha o pensamento. Sendo assim, o educador necessita transformar as palavras em exemplo. Ou seja, pensar certo é fazer certo, e sem essa rigorosidade metódica não existe maneira de se pensar certo.
Para Paulo Freire, o respeito aos saberes do educando, a discussão com eles sobre a razão de ser das coisas e dos conteúdos, assim como a estética e a ética, também são aspectos fundamentais, para a pratica educativa, pois há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Freire exemplifica com a desmotivação que alguns alunos sentem em estudar e cuidar de um espaço que já é esquecido pelos próprios órgãos por ele responsável. Por isso mesmo, não soa estranho quando afirmam que esse é um projeto político afim de, com a degradação do espaço publico e o pouco interesse da população por ele, privatiza-lo.  
Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, seja de raça, de classe, de gênero que ofenda a substantividade do ser humano. Isso não quer dizer, no entanto, que não se deve haver uma reflexão sobre o novo antes de aceita-lo, mas sim que ele não pode ser negado apenas sobre esse pretexto. Nessa linha de raciocínio, a educação tem, como momento fundamental, a reflexão crítica sobre a prática. Por isso, para o autor, está errada a educação que não reconhece na justa raiva um papel altamente transformador, afinal, ensinar também exige o reconhecimento da identidade cultural.
Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra musica. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados.  (pag. 99).
Pode-se afirmar, então, que um dos afazeres de muita importância nessa prática educativo-crítica, é fazer com que os educandos possam experimentar a experiência profunda de assumir-se.  Reconhecer-se no mundo e ter orgulho de si e de suas origens, não significa a exclusão do outro, pois, a identidade cultural e dimensão individual na pratica de Freire e seus seguidores, creio eu, é sinônimo de diversidade.
A segurança, a competência profissional, a generosidade e o comprometimento são aspectos essenciais a todos os educadores. O autor afirma que a autoridade docente democrática deve demonstrar segurança em si mesma, principalmente em relação à liberdade dos alunos. Pois, segura de si, a autoridade não necessita de fazer o discurso sobre sua existência, por que a exerce com indiscutível sabedoria, fundada na sua competência profissional. Assim também é a generosidade, está jamais minimiza a liberdade, já que reconhece que não se vive sem ela. Liberdade implica em correr riscos, o educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Desse conjunto nasce à autonomia do educando, é na capacidade de correr e assumir os riscos que surge um ser independente.  No fundo, o essencial nas relações é a reivindicação do ser humano no aprendizado de sua autonomia. Por ultimo, no aspecto do comprometimento, Freire diz não ser possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse ao educador.
Saber que não posso passar despercebido pelos alunos, e que a maneira como me percebam me ajuda ou desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor, aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. [...] Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente “lido”.  (pag. 95).
Juntando todos os aspectos já citados, posso afirma que a educação é vista, para o autor, como forma de intervenção no mundo. Ela deve ser, em certa medida, reprodutora e desmascaradora da ideologia dominante. No entanto, neutra, “indiferente” a qualquer dessas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. Podemos perceber com isso, o porquê de Paulo Freire ser tão rechaçado entre os conservadores, e ser constantemente chamado de doutrinador, que quer impor sua ideologia aos demais. Estes são incapazes de perceber, ou se percebem optam pelo silêncio para se aproveitar da inocência alheia, que apenas ideologicamente podem-se matar outras ideologias, por isso se autoproclamam como “Sem Partido”. No entanto, o patrono da educação brasileira só fez honrar essa denominação, em sua constante luta a favor da liberdade e da autonomia do educando, e do respeito e valorização do educador. Por isso, suas obras devem ser leituras bases para todos aqueles que almejam, um dia, praticar o magistério. Dessa forma, talvez tenhamos uma educação que permita ao cidadão quebrar as correntes e sair da caverna[3], sair da fábrica, e entrar em um local em que ele não esteja sujeito a autonomia de ninguém, pois a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser.
Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor que cansa, mas não desiste (pag. 100).





[1] O programa Escola sem Partido é um projeto de lei, fruto do conservadorismo, que visa o detrimento da autonomia dos professores e dos alunos, ao impor seis regras bases aos docentes. Sendo a primeira delas: o professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e religiosas.
[2]Viviane Mosé é psicóloga e psicanalista. Especializou-se em elaboração de políticas públicas pela Universidade Federal do Espírito Santo. É mestra e doutora em filosofia, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[3] Refiro-me ao Mito da Caverna de Platão presente no livro VI de “A República”, onde a caverna é o mundo em que as imagens prevalecem sobre os conceitos, formando os pré-conceitos ou opiniões errôneas.   


[i] http://www.paulofreire.org/paulo-freire-patrono-da-educacao-brasileira

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